quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Carta Aberta à Presidência da IECLB

O texto seguir é uma carta feita por Filipe Fialho Alves ao presidente da IECLB na data de 2 de julho de 2011.

Senhor Pastor Presidente da IECLB, Nestor Paulo Friedrich,
“Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem obtivemos também nosso acesso pela fé a esta graça, na qual estamos firmes, e gloriemo-nos na esperança da glória de Deus”.
Com essas palavras de saudação e motivação escritas pelo apóstolo Paulo, escrevo-lhe esta carta em reação à Carta Pastoral da Presidência sobre Homoafetividade, emitida, em 24 de junho de 2011.
Como foi bem exposto, a IECLB encontra-se dividida, e essa polarização de posições em nada tem a contribuir para o diálogo e a formação de consenso dentro da nossa denominação. Também é um assunto que não se pode impor aos diversos grupos da igreja, o que poderia gerar uma crise e a conseqüente cisão. Contudo, desde a primeira carta escrita pela presidência da IECLB no ano de 1999, passaram-se doze anos sem que o diálogo tenha avançado, e a igreja permanece polarizada entre luteranos conservadores e luteranos progressistas. A manutenção dessa posição mantém as estruturas de desigualdade e priorizam a posição mais conservadora, afinal de contas, uma vez que as pessoas homossexuais não podem ser ministros e ministras da igreja, nem receber uma bênção matrimonial, pela simples razão de não haver consenso, a igreja assume um caráter conservador de exclusão.
Como bem disse o filósofo Michel Foucault: “O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não possui eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio. Não somente não existe, como não deve existir e à menor manifestação fá-lo-ão desaparecer – sejam atos ou palavras”. E é exatamente isso que tem acontecido, a homossexualidade não é tema para discussão e, quando vem à discussão, é primeiramente trazida pelos grupos mais conservadores, que a condenam. Enquanto isso, pessoas homossexuais continuam no anonimato, com medo de se exporem e de se expressaram (com raras expressões). Se elas não existem e não falam por elas mesmas, o diálogo nunca se concretizará.
Como a atual carta pastoral lembrou acerca de outra emitida em 2009: “não há no âmbito de igrejas evangélicas protestantes um magistério que tenha a prerrogativa de estabelecer normas éticas que deveriam ser seguidas por todos os fiéis. Nem poderia haver. Na tradição da Reforma protestante essas igrejas não (re)conhecem uma instância eclesiástica autoritativa, muito menos infalível, em questões morais, mas seus pastores e pastoras têm a responsabilidade de, baseados na Bíblia e seus valores evangélicos, orientar as pessoas implicadas ao discernimento ético, fortalecendo-as a tomarem, simultaneamente em liberdade e responsabilidade, suas próprias decisões diante de Deus”. Parece-me que, ao manter-se neutra na discussão, a igreja está, na verdade, exercendo magistério e autoridade, algo que não deveria ser exercida por igreja evangélica.
Talvez uma alternativa para o impasse em que a igreja se encontra é conviver com a falta de acordo, concedendo autonomia às paróquias e a seus ministros e ministras de decidirem por si mesmos acerca desses assuntos. É no ministério compartilhado entre ministros ordenados e presbíteros que se pode decidir o futuro da igreja. A partir do momento em que as comunidades podem decidir por si mesmas, pessoas homossexuais poderão se expressar, receber algum tipo de bênção para suas uniões ou até mesmo exercer o ministério ordenado. Tal qual aconteceu com a ordenação de mulheres, haverá comunidades que vão apoiar e outras que vão execrar esse tipo de atitude, mas ao menos haverá mais visibilidade de que tais pessoas existem na nossa igreja e precisam ser ouvidas.
Por fim, minha oração é para que Deus possa conceder sabedoria e discernimento para todas as pessoas envolvidas, em especial para as lideranças de nossa IECLB. Minha oração também está voltada àquelas pessoas que são vítimas do anonimato e do ostracismo a que são forçadas a encarar. Que o Espírito de Deus sopre sobre nossa igreja e traga conversão de corações.
Paz e bem!
Vitória, 2 de julho de 2011.
Filipe Fialho Alves

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Sobre como fundamentalistas têm ajudado o feminismo e os movimentos pela diversidade

Até bem pouco tempo termos, conceitos, siglas e expressões como gênero, diversidade sexual, LGBT, homofobia e até mesmo “queer” eram virtualmente desconhecidos fora de alguns círculos de grupos de ativistas e de reflexão acadêmica. As estratégias usadas por lideranças e grupos conservadores e fundamentalistas era o silêncio e a invisibilidade. Se não se fala sobre isso... isso não existe. Aparentemente essa estratégia não funciona mais. A ideia agora é demonizar e criar pânico sobre as possíveis consequências apocalípticas e catastróficas que as questões levantadas por essas discussões, pelas pessoas e grupos que se articulam politicamente ao redor delas podem provocar para uma população supostamente ingênua e incapaz de refletir por si mesma sobre elas. E não é possível dizer que essa nova estratégia não tem tido algum sucesso tendo em vista os vários casos concretos (alteração de legislação, aumento da violência, criação de um clima de ódio) onde isso pode ser comprovado.
Mas essa estratégia não é nova e nem de uso exclusivo de grupos conservadores e fundamentalistas que operam dentro de uma ideologia heteronormativa, classista e racista. Sim, eles também têm uma ideologia, embora raramente o explicitem dessa forma. A estratégia de demonizar e desumanizar o outro ou a outra talvez seja a mais comum em todos os empreendimentos de manutenção do status quo opressivo e excludente, violento e colonizador. Não se usa mais (da mesma forma como se usava no passado) fogueiras, afogamento, guilhotinas, paredão, câmaras de gás. Esses instrumentos de extermínio e aniquilação se apresentam hoje de formas diferentes, tão ou mais cruéis que aqueles utilizados em outros períodos históricos. Mas a ênfase discursiva agora parece estar mais no acolhimento amoroso e gentil para a recondução dos desviados e das desviadas ao repasto bucólico e tranquilo através da promessa de paz e harmonia. Cria-se um clima de caos, desordem, loucura e insegurança para dizer que a culpa é “dos outros, das outras”. Mas isso já é sabido e explicar o fenômeno não é a (única) estratégia, e talvez nem a mais eficiente, para fazer frente a essa avalanche que pretende acuar e imobilizar.
Juntamente com o alvoroço em torno das questões de gênero, da diversidade sexual, dos estudos queer, da discussão sobre homofobia veio um interesse crescente por esses temas. Muitas e muitos de nós que temos trabalhado com essas questões temos recebido desde pedidos informais e pessoais para explicar do que se trata até oportunidade de falar em eventos, cursos, espaços públicos de debate. De certo havia uma certa verdade no fato de que se a gente começar a falar sobre essas coisas as pessoas vão ficar curiosas e vão querer saber mais – e talvez até mudar de opinião. Parece que já é tarde demais. O negócio tá na boca do povo.
Talvez o mais surpreendente seja que aqueles e aquelas que não queriam falar sobre o assunto de repente se veem obrigadas e obrigados a estudar e conhecer – e até falar sobre ele. Não são poucos os exemplos de palestras, aulas, cursos, textos, blogs, programas de rádio e TV que têm aparecido e circulado por aí nos quais pessoas e lideranças fundamentalistas e conversadoras – inclusive no campo teológico – têm “apresentado” as questões de diversidade sexual e de gênero de uma maneira minuciosa e informada e às vezes nem eu sei se faria melhor. Ando aprendendo bastante inclusive. Contam com a prerrogativa de que têm autoridade e capacidade de convencimento para que suas reflexões e interpretações sobre as questões apresentadas sejam o suficiente para convencer as pessoas das tais ameaças catastróficas e diabólicas que essas questões representam. Dito de outra maneira, contam com a suposta ignorância e incapacidade de reflexão das pessoas a quem se dirigem. E seguramente há muita má fé e manipulação ideológica na forma como o fazem para atingir esse objetivo, não há dúvida. Também não é novo.
Do ponto de vista de quem tem trabalhado e lutado pela justiça social com justiça de gênero e sexual, podem estar prestando um grande serviço. Não só porque colocam essas temáticas em pauta e oportunizam o acesso a informações (ainda que apresentadas de maneiras altamente ideologizadas), mas porque as experiências cotidianas das pessoas vão encontrando eco nas questões levantadas e outros significados podem ser e são construídos. A dose de medo introduzida nessa equação que visa provocar o pânico representa sempre um risco na medida em que, quando ministrada em excesso, pode acionar outros processos que já não estão mais sob seu controle. Também por isso o discurso vem geralmente equilibrado com flexibilizações no âmbito do próprio gênero e da sexualidade – e com pitadas grandes de amor. Já não se elimina ou demoniza o prazer e o gozo da sexualidade e já não se restringe ou inferioriza o lugar e o papel das mulheres de modo absoluto. No mundo do poder do capital tudo vira produto – desde que a gente continue detendo o direito de patente.
O ponto é que nunca se tinha chegado a um grau de popularização e de pre-ocupação tão grande sobre essas questões como desde quando frentes conservadoras e fundamentalistas começaram a se ocupar de modo tão sistemático e detalhado com elas. Nesse caso, ainda poderá ser válido o ditado que diz “falem mal, mas falem”, pois o silêncio total representaria o aniquilamento. Essa com certeza não é a única – e talvez nem seja a melhor maneira – de olhar para a relação entre fundamentalismo e conservadorismo e diversidade sexual e de gênero no contexto atual. Não desconheço, ignoro ou deixo de me preocupar com as tragédias que temos visto em vários setores, provocadas pelas reações aos avanços e às conquistas nessas áreas. Não tenho dúvida de que eles mais atrapalham do que ajudam e de que a vida seria mais fácil sem eles. Mas se o tamanho da reação é proporcional ao tamanho do incômodo gerado, tendo a pensar que o trabalho feito até agora teve resultados importantes.



De qualquer forma, essas são questões sobre as quais temos pensado e conversado em alguns espaços e que talvez nos animem no processo árduo de disputa que temos pela frente. A tarefa que segue é, pelo menos, dupla: entender esse novo contexto e construir novas estratégias que permitam aprofundar essas discussões e continuar realizando o trabalho de resistência e luta já vinha sendo feito – nos movimentos sociais, nos espaços acadêmicos, nos governos, nas igrejas – e retomar onde deixou de ser feito por acreditar que as conquistas estavam consolidadas. Além disso, será necessário continuar vigilante e enfrentando as estratégias que vão se reconfigurando e que vão derrubando conquistas e retirando direitos. O trabalho de desconstrução das distorções e manipulações continuará tendo que ser feito. Mas agora, em muitos casos, já partimos de um outro lugar. Precisaremos, mais do que nunca, construir formas de apoio, colaboração e cuidado mútuo para nos fortalecer enquanto movimento. A outra velha estratégia – dividir para conquistar – segue também firme e forte.

extraído do blog: andremusskopf.blogspot.com.br
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